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segunda-feira, abril 09, 2007

Grande seca...

"Chico Bento também já não estava no rancho. Vagueava à toa, diante das bodegas, à frente das casas, enganando a fome e enganando a lembrança que lhe vinha, constantemente e impertinente, da meninada chorando, do Duquinha gemendo:
'Tô tum fome! Dá tumê!'
Parou. Num quintalejo, um homem tirava o leite a uma vaquinha magra.
Chico Bento estendeu o olhar faminto para a lata onde o leite subia, branco e fofo como um capucho...
E a mão servil, acostumada à sujeição do trabalho, estendeu-se maquinalmente num pedido... mas a língua ainda orgulhosa endureceu na boca e não articulou a palavra humilhante.
A vergonha da atitude nova o cobriu todo; o gesto esboçado se retraiu, passadas nervosas o afastaram.
Sentiu a cara ardendo e um engasgo angustioso na garganta.
Mas dentro da sua turbação lhe zunia ainda aos ouvidos:
'Mãe, dá tumê!'
E o homenzinho ficou, espichando os peitos secos de sua vaca, sem ter a menor idéia daquela miséria que passara tão perto, e fugira, quase correndo"
O quinze- Rachel de Queiroz

O livro O quinze de Rachel de Queiroz retata a grande seca de 1915. Lendo um fragmento do romance(com destaque para o transcrito acima) fiquei pensando na história das personagens e na seca. Existem milhões de pessoas como Chico Bento(no Ceará e no mundo todo). Gente que esconde o orgulho no mais íntimo de si e estende a mão ao mesmo tempo em que abaixa os olhos. Porque a fome e a miséria transformam o homem num sub-homem, menor, pequeno, quase imperceptível. Mas a dor e a vergonha são grandes, quase não cabem no peito, quase explodem, quase gritam. E existem, também, muitos donos de 'vaca'; melhor, existem donos de 'rebanhos' inteiros('rebanhos' grandes- imensos). E que não enxergam a fome alheia; não enxergam porque não querem assumir a culpa própria, preferem não ver porque é conviniente. E a miséria passa perto, vive muito perto. E a seca? A seca já não é mais a de 1915, a seca é diária e se espalha por todos os lugares. Seca de água, de consciência, politização, humildade, solidariedade, educação. Seca de amor. Grande seca. E a grande seca toma conta de tudo. Deixa mortos, traumatizados, pés e corações rachados.

Um comentário:

Éverton Vidal Azevedo disse...

Nossa que forte...
Meu comentário e nao ter o que comentar.

bj.